Existe uma literatura multimodal, intermidiática, e não-canônica, produzida no modernismo brasileiro (e também fora do Brasil), no início do século XX. São experimentos surpreendentemente mal investigados. Eles mal aparecem em obras fundamentais de análise crítica e história literárias. Exemplos incluem: O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, de 1918-19, multimodal e multi-autoral; Primeiro Caderno do aluno de Poesia Oswald de Andrade, de 1927, com capa e projeto gráfico de Tarsila do Amaral, que já havia colaborado com Blaise Cendras em Feuille de Route, de 1924 (do mesmo Blaise Cendrars com Sonia Delaunay, 1913, há o La prose du Transsibérien et de la Petite Jehanne de France, um livro-sanfona de cerca de 2 metros de comprimento).

São desenhescritos, termo de Augusto de Campos para definir os experimentos multimodais de Pagu, especialmente o Album de Pagu, de 1927, e o Romance Anarquista, de 1929-31, este último em colaboração com Oswald de Andrade.

Por que tanta negligência? Como e por que ignoramos um conjunto tão audacioso de experimentos no núcleo de nosso modernismo, e mesmo antes dele?
“repito:
a nossa pobre literatura
tão fechada e tão chata
não se pode dar ao luxo de ignorar
coisas como essa
com gosto de invenção e de liberdade”
(Augusto de Campos. “Pagu”)
O fenômeno parece ao cânone … amadorístico e frugal, e estranho (estranho demais para ser tratado como sério). Quando não submetidos à impressão em série, exemplares únicos como O perfeito cozinheiro ou o Album de Pagu, uma propriedade que caracteriza notáveis experiências de “livros de artistas” do sec. XX, é diluída a noção de obra. E quase sempre colaborativos, multi-autorais, é diluída a noção de autoria.
Mas estas não são experimentações triviais. Elas envolvem diversas formas de colaboração, em diversas escalas temporais, e a incorporação de vários e novos materiais (fotos, retratos, cartões de visita, recortes de jornais e revistas), sistemas (fotografia, tipografia, ilustrações gráficas, cartoom, aquarela, texto verbal), e técnicas (montagem, justaposição, colagem, bricolagem). Trata-se, provavelmente, daquilo que a filósofa Margareth Boden chama de criatividade transformacional, um processo histórico e cognitivo de “alto custo”, e que acontece apenas quando surgem novos “espaços conceituais”, ou novos paradigmas, em arte, filosofia e ciência.
A “criatividade transformacional) “envolve alguma transformação em uma ou mais dimensões (relativamente fundamentais) que definem o espaço conceitual específico” (Boden, 2010: 29). Um espaço conceitual é estabelecido através de “um conjunto de restrições, que permite a geração de estruturas dentro desse espaço […]. Se uma ou mais dessas restrições forem alteradas (ou abandonadas), o espaço será transformado. Idéias anteriormente impossíveis (relacionados ao espaço conceitual original) tornam-se concebíveis” (Boden, 1999: 352). Espaços conceituais são hábitos.
O que examinamos, no desenhescrito, portanto, é uma experiência de conflito com hábitos, que podem ser descritos como “padrões de restrições” ou “padrões estáveis de ação”. O hábito tem a forma lógica de uma “proposição condicional”, afirmando que alguns fatos aconteceriam sob certas condições (Peirce EP 2.388). Ele funciona como uma “regra de ação”, uma disposição para agir de certas maneiras sob certas circunstâncias, especialmente quando o agente (ou comunidade de agentes) é estimulado ou guiado por certos motivos. Um conflito com uma expectativa caracteriza o comprometimento de uma previsão criada por um hábito. Se “espaços conceituais” são hábitos, eles também são “nichos”, provendo as condições de sobrevivência dos agentes (vamos explorar adiante mais detalhadamente esta metáfora). Estamos falando de “protocolos”, que são padrões, ou arranjos, estáveis de ação. Muitos protocolos são quebrados nos desenhescritos. Padrões de avaliação são afetados. Pra começar, nos exemplos examinados, como avaliar (descrever ou explicar) a materialidade tipográfica (ou caligráfica) ativa e personalíssima dos escritos? Como explicar as interações complexas criadas entre os sistemas (verbal-gráfico-tipográfico-material)? Sobre o próprio sistema verbal, como avaliar a atuação do verso livre ou branco, de estruturas heterométricas e compostas, em sua ativa distribuição gráfica? E das construções visuais e pictóricas no “livro”? Estas questões sugerem o problema do método/modelo.
A dificuldade para examinar novos espaços conceituais, ou novos hábitos (por exemplo, os desenhescritos), decorre diretamente da dificuldade para encontrar ferramentas (modelos e métodos) conhecidas para abordar padrões desconhecidos de estabilidade de ação (aparentemente estáveis). Como abordar fenômenos que não se adequam facilmente às perspectivas estáveis (ortodoxas) de teoria e crítica, de um lado, e a análises visuais, de outro?
Augusto de Campos está entre as raras exceções, mas ele também não nos fornece mais do que algumas dicas sobre como tratar os experimentos de Pagu:
— “a partir da descoberta do espantoso “Álbum de Pagu” por José Luis Garaldi, percebi que me encontrava diante de mais um autor não-canônico, como os que haveríamos de identificar em Gregório de Mattos, Sousândrade e Kilkerry (Augusto de Campos, 2018) — não nos fornece uma boa resposta para o problema do método.
“PAGU
(nascimento vida paixão e morte)
uma vida vivida
na concisão de uma história em quadrinhos
autobiofagia
é provável q patrícia
nunca tivesse pensado em publicar esse
“livro”
deu-o de presente
objeto único
a tarsila”
Trecho de: Augusto de Campos. “Pagu”
Risério nos fornece uma boa pista sobre estas relações:
“De fato, nos textos e desenhos leves e livres do Álbum {Pagu}, longe de condicionamentos estéticos e literários, topamos com o cultivo da paródia e da “despoetização”, lirismo oswaldianamente destilado. De um lado, entre a prosa e o poema, Pagu foi surpreender a poesia. De outro, texto e traço, criou um diálogo verbal-visual (simbólico-icônico, diriam os semioticistas), tirando partido da mistura e do atrito de linguagens. Neste circuito, os sentidos se completam e se influenciam mutuamente. E há um contágio de formas: em presença do desenho, o texto é atingido pela visualidade, sofrendo um processo de iconização, para funcionar plasticamente.”
“pagu: vida-obra,
obravida, vida/Antonio Risério”.
Trecho de: Augusto de Campos. “Pagu”. (pp. 99-100)
É uma boa pista, mas não chega a funcionar como um método. A questão que mais nos interessa aqui: como abordar este fenômeno?
O que encontramos, hoje, nas abordagens é uma parafernália terminológica vaga e desencontrada para descrever as relações entre os sistemas (verbal, gráfico, fotográfico, etc) — MISTURA E ATRITO… CONTÁGIO… AVENTURA PERCEPTIVA… CASAMENTO ESTREITO … CUMPLICIDADE … CONJUNTO DE EXORCISMO … PARCEIRAS DE DANÇA … TERCEIRO NÍVEL … MESCLA SINGULAR … MUNDO PRÓPRIO… Esta lista está longe de ser exaustiva. Estes são apenas alguns dos termos mais utilizados. Deveria ser um truísmo afirmar que é necessário vincular essas expressões/termos a teorias e modelos. E em quase todos os casos isso não acontece. As explicações não aparecem vinculadas… a teorias e modelos.
Devemos começar por uma premissa muito básica: há sistemas de signos que reconhecemos como distintos. Esta não é uma premissa sobre a ontologia destes sistemas. Mais ordinariamente ela apenas nos informa que examinamos diversas classes (ou categorias) — linguagem verbal (poesia ou prosa), ilustração gráfica (desenho e ilustração), tipografia, sistema gráfico (diagramação), fotografia. Também podemos afirmar que há diversas formas de relação que podem ser concebidas entre estes sistemas — dependência, reação/justaposição, referência, analogia, necessidade, contingência. Muitas, e distintas, propriedades resultam destas formas de relação. Afirmamos que um poema (ou prosa) “refere-se” (referência) a uma certa imagem (desenho ou foto), que a fonte tipográfica é “inseparável” ou “indissociável” (dependência ou necessidade) de um verso (sistema verbal), que ele (verso ou sentença) “contrasta” ou “conflitua” (justaposição ou montagem) com uma ilustração gráfica, que ambos (verso e desenho) se confundem por similaridade (analogia). Diversas teorias e modelos podem disponibilizar boas ferramentas para descrição dessas propriedades.
Nós exploramos, neste projeto, o modelo pragmatista de C.S.Peirce. O building-block é a noção de semeiosis, ou ação do signo:
De acordo com o modelo de Peirce, qualquer descrição de semiose deve necessariamente tratá-la como uma relação constituída por três termos irredutivelmente conectados – signo, objeto, interpretante (S-O-I), que são seus elementos constitutivos mínimos (CP 5.484, EP 2: 171)
Quando olhamos a relação palavra-imagem, nós não olhamos uma relação diádica, entre dois termos ou sistemas. Para Peirce, nós examinamos uma relação triádica, entre 3 entidades ou processos — signo, objeto e interpretante. O signo “está para” seu objeto de modo a produzir um efeito, que é outro signo, em um intérprete (interpretante). Peirce descreve esta relação como combinação. Para Peirce, a idéia de combinação é uma relação triádica. Uma combinação é uma tríade, e envolve as idéias de um todo e de duas partes, relacionadas. ‘Combinação’ significa precisamente algo que envolve uma relação triádica irredutível.
A suposição que exploramos aqui é que nos desenhescritos, os sistemas que são reconhecidos como distintos (sistema caligráfico, verbal, ilustração gráfica) estão relacionados como signo e objeto estão relacionados na tríade signo-objeto-interpretante, ou semiose. Isto é, em nossas descrições, estes sistemas comportam-se como S e O na tríade S-O-I. Eles estão combinados, em um sentido bastante técnico.
S em S-O-I é a entidade, estrutura ou processo empregado por um sistema para representar outra coisa, entidade, estrutura ou processo. O em S-O-I é outra coisa, estrutura ou processo, que o signo representa. Nos casos em que estamos mais interessados aqui, esse objeto deve ser entendido não como uma substância, uma propriedade ou uma coisa, mas como outro signo em ação ou sistema semiótico. I em S-O-I é um efeito produzido em um sistema pelo uso de S, e regulado por O.